sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Faltou luz

E assim a escuridão se fez levando o breu para todas as ruas e com este jeito arrevesado de as coisas se mostrarem, ficarmos cobertos do negro da noite se dá em boa hora pois deste modo podemos observar os pirilampos vagando no entorno da casa, festejando alegremente que em apenas um momento possam ser vistos, acompanhados e curtidos pela vizinhança que parece não mais saber enxergar. Em seu rastro as trilhas ficam iluminadas pelo olhar esgazeado das corujas, dos gatos vagando na noite, dos cachorros insones e perdidos e mais um tanto da fauna noturna perambulante da noite. 

A escuridão funciona como um gatilho para arregalar o olhar e enxergar o que não aparece na claridade, o que pode ser muito significativo. Acostumar a vista ao negrume e poder assim adivinhar pelas sombras da noite as ameaças que não possuem corpo em dia alto, o medo, que por estar iluminado faz muita sombra na decisão e indecisão no propósito, a coragem que se apequena ao se enxergar o caminho livre e, assim, as atitudes tomam outro rumo quando aclaradas.

 A escuridão da noite possui muitos destinos se lhe prestarmos atenção devida, desde a oportunidade de se aquietar ouvindo o que nos quer dizer o entorno escuro, em qualquer lugar, até a descoberta de uma vida que pulsa em outra cadência. Por ora, é só o que resta.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

O negativo do filme

Vou passar a limpo alguns acontecimentos do passado porque quero aclarar para mim as imagens como se eu tivesse uma maquina de fotografar das antigas que dá oportunidade de, após o filme abarrotado, retirar a película e examinar cada acontecimento no negativo e a olho nu antes que o instantâneo se torne um acontecimento colorido e que apareça em suas reentrâncias de sombra e luz uma ilusão, uma verdade falsificada ou uma promessa mal feita ludibriando quem se propôs a gravar. 

Decidi então imaginar que eu tinha em mãos uma maquina bem antiga porque de certo ela terá dentro de si uma engenhoca acurada e detalhista o que os tempos modernos não possuem mais tudo funcionando na velocidade da luz.  Nada mais tem tido a prioridade de se ver em minucias: nem a fala, nem a escrita e muito menos a conversa e me agarrei à tentativa de ver dentro de mim a oportunidade de esmiuçar os acontecidos. Aqueles mesmos aos quais me curvei praticamente sem querer. 

E assim desfilaram perante mim todos os “negativos” dos últimos tempos que surgiram desordenados me proporcionando uma chance de examiná-los contra a luz e decidir o que vou relegar ao ostracismo do fundo da gaveta e o que vou revelar para o mundo e exibir em porta retrato e álbum de recordação que figuram dentro de mim. 

Com muita audácia e coragem deixei na película negativa do filme que inventei todas as ocasiões em que me deixei enganar, atitudes que tomei sem muito pensar e momentos em que deveria partir e resolvi ficar. Vou deixar à mostra apenas o colorido das letras que derrubo por sobre o papel e que vão delatando o dia a dia por aqui, por ali, eternizando a melhor fotografia da vida.

sábado, 17 de outubro de 2020

Os comunicáveis

 

Ando enredada em muitas coisas, a maioria delas nem presto atenção porque não possuem um rabicho que se conecte a mim e então, de pura implicância me desvencilho com a maior facilidade, porque, afinal de contas, tudo o que não está conectado não parece ter importância e assim vão se somando irrelevâncias das mais variadas formas. Por este motivo ando no arresto de tantos cabos que faz parecer que a vida se encontra dependurada em algo ou, melhor, em tudo. 

As combinações de antigamente – todas – dão uma pinta de falência geral porque com certeza parecem, hoje, terem sido feitas de forma telepática porque estávamos no local combinado e sem atraso somente com o ajuste firmado no dia anterior ou, quiçá, muito antes. Não havia necessidade de confirmar: o dito era cumprido e, com rigor, de local e horário fosse qual fosse o compromisso. 

Por ora encilhados pela moderna comunicação via aparelhos ultra poderosos nos foi tirada a independência de cumprir com a promessa “de fio de bigode” justamente porque, para alguns, para muitos ou para todos ficou outorgada a tentação de o compromisso passar em branco por falta de conexão momentânea, a energia elétrica se foi, a bateria acabou. Simples assim. Vez ou outra pode se fazer muito tentador ignorar o lufa-lufa das redes sociais que nos acaçapa no “corner” dos minutos de um dia inteiro. 

Enlouquecidos com o pisca-pisca eletrônico fica bem difícil se evadir da ciranda multicolorida do viés da vida moderna, com seus ícones chamativos e em sua maioria passiveis da importância que lhe são conferidos. Fica parecendo de certa maneira irônica que “o dito pelo não dito” nunca teve tanta notoriedade.

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

De fora

Idealizei uma chave que apenas abra na minha cabeça lembrança de coisas - ou das coisas - que eu gosto de fazer, de olhar, de rever, de esquecer e de chorar. São muitas e aproveito para - ora em diante - deixar bem na minha frente as ditas por que acredito ser mais fácil acordar e simplesmente sorrir.  Não que eu vá achar graça de tudo, porém o fato de me defrontar comigo mesma e uma listinha do bem já ajuda. Deste mesmo modo de organizar os pensamentos bons desorganizei os de maus modos, os que nascem com a chateação em seu DNA. Estes não terão vez no gaveteiro a que me proponho fazer. Ficarão relegados, bloqueados e serão dizimados sem dó nem piedade pelo bom senso que o cansaço proporciona aos agentes da outra banda. 

O dia que aponta ali no horizonte marítimo chega cheio de novidades e todas diferentes do dia anterior e a esperteza é observar quem mudou mais de lá para cá, se o clima, se nosso intimo. Ou os dois, quem sabe. Melhor não pensar muito sobre o assunto e se jogar de boca na xicara de café preto escaldante porque após dois goles tudo pode mudar. Se o olhar estava embaçado e frouxo, se aclara e se define com o espirito acompanhando célere o movimento. Que perplexidade! Água bem quente e uma especiaria se torna um objeto de desejo todos os dias. E basta. 

Na sequencia o clima se enfuna e entra pelas janelas sendo ele de bons modos ou maus modos, entra sem bater e define se haverão galochas na soleira da porta ou um guarda sol multicolorido na espreita. Qualquer das duas opções esta sempre de bom tamanho porque não tem como discutir com a natureza. 

Chegou a hora do alimento e das escolhas do dia e da mesma forma não se discute, pois a fome é o melhor cardápio e assim, com a disponibilidade de mais ou menos panelas, a alquimia acontece e o corpo agradece.  Com muita sutileza, assim como o dia aponta as orelhas se despede com igual reverência. É nesta hora magistral que a chave vem ajeitar os escaninhos das bênçãos diárias deixando – pelo menos por mais um dia – os desordenados de fora.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Um chip

 

Percebi que o chip havia se rompido com toda a autoridade de quem manda e não pede quando já na rua estava, e foi deste jeito imediatista que me tornei um ser mambembe que batia cabeça e tonteava para descobrir como gerir o que eu pretendia sem o maldito que anda ao meu lado muito mais do que a minha sombra. Junto com ele, seu irmão gêmeo e de todas as horas, a internet, resolveu fazer um “brake” e sumir da vista, melhor dizendo, do conjunto de cabos visíveis e invisíveis que enfeiam a minha casa. Pela sua ausência sai porta afora parecendo nitidamente que havia conluio entre estes dois algozes.

Caminhando sem rumo achei por bem tentar lembrar de como era a vida antes deste período incerto em que estamos o tempo todo pendurados em algo invisível que nos comanda parecendo que é para o bem, mostrando que e sempre melhor saber de tudo um pouco do que muito de uma coisa só. Um tempo em que a irrelevância e a superficialidade vencem com folga espantosa tudo o que se exige mais de um minuto de atenção.

Ficou para trás o modo de pensar com vagar e ter para si o tempo em que os neurônios façam a conferência do assunto e com carinho vai liberando as alternativas para análise. Não existe mais o sentar-se para pensar, olhar para longe buscando socorro, abrir páginas de um livro qualquer para alimentar o raciocínio lógico, usar uma caneta e um papel para anotações dispersas que fatalmente se unirão nas respostas tão aguardadas.

Vou retomar a situação, não sem antes deixar pelo caminho pedaços de mim. Irei até o fim da estrada e ao voltar catarei um por um estes cacos deixados ali e vou organizá-los em uma nova configuração, desta feita, formatada no meu “modo” antigo.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...