terça-feira, 19 de maio de 2020

Quem sou - dueto de textos de Vera Lucia Renner e Nelson Pafiadache



Um título que une com o mesmo propósito iguais letras que se diferenciam claramente na construção da escrita não se distanciando, entretanto, do sentido proposto!

Quem sou – por Vera Lucia Renner

Resolvi aceitar o desafio de eu mesma me perguntar “Quem sou” após ter lido artigo semelhante muito bem escrito pelo meu interlocutor favorito para assuntos literários e imaginei que se eu mesma discorresse sobre o tema talvez chegasse a um resultado inusitado, estranho, descabido e diferente do dele obviamente. As histórias são diversas, mas ao fim e ao cabo todos somos parecidos até que se decida o contrário, se duvide, renegue ou renuncie a visão que os outros deliberam ter, para o bem ou para o mal, de “nosotros”.

Lembro que até bem pouco tempo a roupagem que me cobria estava enredada e sufocada para acolher quem deveria ser, aceitando sem reclamar as imposições da vida, estas que aí estão embarafustadas de rotina do a dia a dia e que vão se incorporando como uma lama astral nefasta que molda a existência e se prende ao absurdo dos outros. O de fora desconhece o de dentro e deste jeito incomum de existir me fui vida afora cumprindo ritos alheios.

Por mais que eu quisesse e me empenhasse não encontrava aquela que estava ali à mostra de todos e que, por certezas outras, deveria ficar escancarada, uma vez que está em minha frente, em letras garrafais, a epígrafe de quem eu devo ser.  Apresentava-me ao mundo cumprindo à risca o rito de passagem de quem eu sou para o que esperavam, melhor dizendo, do que exigiam. Sou ré confessa que por minha conta e risco não consegui escapar deste universo que nos rouba a alma. A minha e mais um tanto de gente. É o protocolo da existência.

Foi com um tapa na cara da vida muito bem dado, que vim a mim com tanto vigor que em poucos dias as dúvidas e as reflexões antigas tomaram um rumo vertiginoso dentro de mim derrubando as muralhas do mundo adverso que me aprisionava e, uma por uma, foi caindo a máscara de quem sempre se apresentou com perfil duvidoso.  Significou um acordar do sono em berço esplêndido e ao descer deste púlpito comum a todos me deparei comigo mesma, essa daí que de ora em diante rejeita qualquer rótulo, bem ou mal feito, e que tem nas letras, na solidão, no vento, no sol e no mar a companhia desejada. Por fim o resgate de uma criança que, ao crescer, ignorou sua memória seletiva.

Quem sou – Por Nelson Pafiadache

Meu nome é Nelson e nascido em 1954, em Montenegro, RS. Cheguei para partilhar uma casa com mais cinco irmãos.  Seis anos depois, atravessei a rua para a casa nova e “fim do aluguel”- sussurrava meu pai! Logo alguns dias na nova morada, veio meu batismo de fogo escolar, pois diante da minha resistência em escrever toda letra “o”, sem tirar o lápis do papel para finalizá-lo, fiz minha mãe dedicar-se parte de uma manhã, através de severo método, para consumar o desiderato.

           De lutar para sobreviver ela sabia muito, mas de didática não tinha essa de que “vovô viu a uva e não pôde comer, porque não tinha dinheiro”. Contrariando Freire, achava que o vovô devia ter guardado um dinheirinho ou se contentar com uma laranja comum do fundo do quintal! 

          Na sua despedida, tendo vivido mais de 90, me senti grato por tanto que dela recebi, mas ficaram três questões em aberto; duas iria constrangê-la e a terceira era sobre a relevância da feitura do meu “O” desenhando uma rodinha e passado um risquinho no terço superior. Intuo que por ser muito exigente, achava que não se podia perder nos detalhes que estragava o todo. Não gostava de populismo e menos ainda do politicamente correto, era o que era e pronto!

          Dado este confinamento e ser do rotulado grupo de risco, pela idade, saúde, pensamento e obra, por minha culpa, tão grande culpa, Hosana nas alturas, volto a escrever um pouco e refletir muito mais, pois este segundo não se submete a nada e a ninguém. Escrever é arte que milhares aderem, mas com maestria, raros. O leitor sabe reconhecer quem é do ramo e que lhe faz bem, feito cloroquina nos primeiros dias!       

          Das reflexões confesso algumas perquirições existenciais e volta e meia me pego a buscar saber quem sou eu, do que sou capaz, de como possam me conceber os outros e com que acerto ou engano. Olho para os circundantes e ficou a imaginar se depois de tantos anos, possam saber quem soy yo? Se sou eu e minhas circunstâncias ou se minhas circunstâncias nem são objeto de tanta relevância. Alguém saberia avaliar ou conhece algum instrumento para medir isso?

          Mas lá pelas tantas trato de a tudo simplificar e pensar que sou muito parecido com todos. Mas mesmo assim, importa descobrir quem sou eu, imaginado por mim e concebido pelos outros. Se me escondo de mim, por vezes, hei de ter me escondido de tantos e tantas vezes, porque precisamos sobreviver, até pelos truques, fintas, jogadas, nem todas com aparência tão ética, tão morais, apenas importando não se afeiçoar com essa forma de reagir, apenas usá-las em estado de necessidade ou em legítima defesa, para sobreviver nesta selva dos homens.

          Então, quem sou eu? Sentencio: Sou quem eu sou e um pouco sou aquilo que pensam quem eu possa ser. Às vezes coincide noutras, nem a dezena do jogo do bicho acerta, mas o que importa é que eles também sigam nessa inquietação, que é em verdade uma parte do viver, essa luta de indefinições até mesmo que sendo quem somos, vale para a vida e nada para a morte morrida ou matada, menos de amor, porque disso nunca assisti exéquias!

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