segunda-feira, 8 de julho de 2019

Morada escolhida



Pensando bem, caminhei tanto que me perdi e ao perceber que não havia esforço na retomada veio ao meu encalço este lugar parecendo que nunca dele sai. Parece-me que conheço cada canto da casa e assim posso andar com os olhos vendados que em nada vou tropeçar, que todos os objetos dispostos arrumaram-se sozinhos deixando para mim apenas a observação e do mesmo jeito paredes parecem sair do lugar para me fazer circular livremente. Nas ruas a impressão é que conheço todas as pessoas por quem cruzo todos os dias e que todos os meus bons dias sempre foram dados e recebidos de volta.

A noite vai alta quando me desacomodo e busco esfriar meus pensamentos na aragem gelada desta morada praiana, sentando-me no melhor lugar com vista para o mar, que me espia escuro, rugindo descompassadamente o que soa como musica para mim. O corpo vai resfriando junto com a mente que se liquefaz tateando as cenas que parecem repetidas de outras horas que não essa. Prolongo o momento na observação da rua deserta até estremecer de medo e de frio. É um medo bom e o frio vem me avisar que de agora em diante as variações terão sempre uma benção da natureza, que ora resfria o bafão dos pensamentos obsessivos, ora o vento leva todas as pétalas para o caminho a ser trilhado e deste jeito diáfano vou vivendo por aqui.

Que modo é esse de caminhar onde os sapatos não gastam, as pegadas se esvaem no vento ou chuva, os caminhos se cruzam entre presente e passado, os encontros se esfumaçam virando alegorias, as conversas se congelam no tempo, os pontos e vírgulas somem do texto e os parágrafos se desacomodam na pauta. As buscas de outrora se cristalizaram de tal jeito que do nada viraram releituras obsoletas, as afirmações contundentes viraram pó, os amores eternos morreram antes do primeiro round. E é deste jeito que meus contornos vão se igualando a esta instalação que abriga tantos caminhos agora se permitindo ser um só.

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