sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A garrafa


Tropecei no artefato e quase me fui ao chão rolando sobre ele, mas o que mais me chamou a atenção é que havia dentro da garrafa um bilhete e que, em um primeiro momento, parecia desenhado o meu nome em tão mal traçadas linhas. Depressa resolvi investigar porque nestas paragens de exílio auto- concedido e abençoado, as surpresas vão acumulando como se fossem bônus para quem agora olha a vida como um tempo que não precisa ser contado, apenas sentido e, de certo modo, tenho autorização para retratá-lo às minhas expensas.

Mesmo muito curiosa eu não tive coragem de abrir a garrafa porque de fato o seu conteúdo poderia virar pó ao se contaminar com estas aragens de beira de praia, tão diferentes de um além-mar cuja origem me parece ser a do objeto. O oceano em suas profundezas seduz a todos que desejam dispor de suas águas revoltas como se fosse um guardador de segredos ou um túmulo que se fecha ao lhe ser confiado uma missiva.

Fiquei ali, com um sentido de que talvez eu tenha sido descoberta, mesmo que eu não tenha fugido, vai que uns e outros se permitam pensar que foi o que eu fiz e assim, ao não me encontrar no meio do mundo do caos, acharam por bem me procurar por aí. Penso também que talvez o mar tenha sido a primeira opção por me saberem com um sentido atávico em relação ao litoral desde que recém-nascida e que passei a respirar a maresia como se ela assim fosse o meu oxigênio de sobrevivência.

Voltei a me concentrar no bilhete que a garrafa sem rotulo portava e que mostrava algumas frases antes de se arredondar em um minúsculo canudo para que assim ali coubesse. Sentei-me, agora mais tranquila, com a missão concedida pelo mar de recolher aquela carta que veio até mim como um símbolo de recados idílicos, de amores remotos, de busca de vidas arrastadas por ela mesma.

Acometeu-me de pronto certo cerimonial na busca do conteúdo que poderia ser alcançado se exterminasse em mil pedacinhos a existência vitrificada que ora se apresentava. Aprofundei meu olhar pela enésima vez àquele bilhete aprisionado e que mais parecia ser um recado do passado e, assim, ao dar-me conta desta possibilidade lembrei-me que quando fiz o salto, toda minha bagagem estava comigo, tanto as de preferência quanto as de nem tanto.

Deste modo, devolvi ao mar o que não me pertencia e deste jeito, assim meio afoito e ao mesmo tempo crente, tenho a convicção que talvez eu tenha sido contaminada, em alguns segundos, pela ilusão da vida.

Nenhum comentário:

Papelaria em dois tempos

  Não sei quem me encontrou primeiro, se aquela papelaria antiga ou eu, que ando gastando a sola do sapato atrás de quinquilharias que lembr...