sábado, 30 de novembro de 2013

O pão


O sol se punha dando adeus às formas, enegrecendo paulatinamente toda a paisagem e assim eu também fui me entregando à noite, me despindo da energia do dia e incorporando com sofreguidão esta etapa misteriosa. A noite se apresenta com surpresa a mim, talvez porque eu a anseie muito e quem me bate continência sutil é a calma, um verdadeiro acinte indecoroso acompanhado pela surda solidão que teima em se achegar, espaçosa e com muita intimidade.
Nesta tarde, porém, foi diferente e outra surpresa bateu à minha porta dando folga ao meu costume e aos meus pensamentos. A oferta proveio de generosas mãos que me agraciaram com um pão que tinha a cara de um dia que termina. Fumegante e volumoso, a massa ainda morna se inclinava reverente ao toque tornando emocionante a simplicidade da oferta. Ao fatiar pude entrever as trilhas caprichosas fabricadas pela quentura do forno além dos desdobres incertos dos circuitos muito bem arrumados pelo acaso na composição da alquimia.

A alma da iguaria é o fermento que por sua vez dá vida ao manuseio desta massa que recebeu de práticas mãos um amasso intenso. Fiquei a imaginar que este alimento sendo doado desta forma só pode ter em sua receita a habituidade do repartir me dando a certeza de que na feitura se intensificou o pensamento, e no puxa-estica da massa crua no tabuleiro se estabeleceu a perfeita sintonia entre a quentura das mãos e a mistura de especiarias.
Sempre presente, os aromas caseiros vieram se misturar à peculiar maresia que nesta tarde de ventos parados intensifica o ambiente e traz o milagre da multiplicação. Um pouco de descanso e de abandono e a peça está pronta para entrar na fornalha e se transformar na moeda da vizinhança, um nirvana do paladar acompanhado por uma simples e honrosa lembrança.

sábado, 23 de novembro de 2013

Segredo


Acordei naquele dia preparada em atender um chamado que eu não conseguia identificar. Foi quando me deparei frente ao entulho que me olhava ameaçador e impulsionada pela curiosidade vi-me inclinada a chafurdar em tudo o que se apresentava. Não foi fácil abrir os assuntos e separar com consciência o que – ou quem – presta ou não. Rodeei-me de lixeiras e porta-jóias imaginários para separar o joio do trigo.
Já na primeira leva saltaram da caixa de pandora risadas e correria o que me pareceu bem infantil porque só mesmo em criança temos a leveza e a ânsia de correr para todo lado com tanta energia. O tempo parecia brilhante e no ar calmo eu vi almoços nos jardins com toda a assistência de folhas e flores no entorno caindo ou ameaçando se desdobrar por cima de nós. A imagem se apagou rapidamente sem que eu pudesse lhe por as mãos. Acho que foi um devaneio e devo estar febril.

Ao invés de frio senti uma brisa cálida ao passar para a próxima leva que me aguardava serena e, graciosamente, me convidava a entrar. Gostei da recepção e foi ali que me deparei com as perdas enfileiradas uma a uma e todas muito resignadas com o futuro que lhes foi destinado. Também me dei conta que o sofrimento não fazia mais parte desta etapa porque com mais gentileza ainda fui acompanhada até a saída e se fechou aquele portal. Na minha garupa, risada de criança acompanhada por um olhar de azul transparente que me foi uma companhia breve, porém definitiva.
Agora o volume do assombro já havia se acalmado e restava um espaço enorme que aparentemente estava aferrolhado e dele eu tive muito medo. Circulei um pouco tentando imaginar quais segredos estariam tão bem guardados e tentei em voz alta fazer uma decifração do que poderia ser. Minha impressão foi de que ali se encontram os mal feitos de quem eu confiava, a ausência dos meus amores e amados e a completa ignorância de e sobre mim. Com certa agonia e um pouco cansada resolvi não abrir esta última fase e, assim cicatrizada, rumei para o desconhecido.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Temporais




Deixei-me levar docemente pelos ventos uivantes que, volta e meia, vergastam a minha costa derrubando tudo sem raízes e sem forças para se manter em pé. É assim a força da natureza e eu igualo a mesma em relação aos nossos mais caros valores e sentimentos que se dobram a mercê da vida.

Vida essa imponderável que segue em frente sem que a consigamos deter fazendo apenas o possível, se rendendo em seus braços, aproveitando a ventania que sopra deixando-se envolver pelo tempo, vagando em outros braços mais calorosos e desconhecidos, tornando a experiência mais inusitada e profunda.
A murada da natureza tem urgência no chamado e vai balançando sem ritmo os braços fortes do arvoredo que se dobra, porém não se entrega. Ali estão para defender sua vida que provém das profundezas da terra na busca da seiva constante que lhes entope de saúde seus veios dando-lhe força para resistir ao rugir da atmosfera voluntariosa tão dada a rompantes e violência.

Aqueles que não resistem se vão ao chão porque há muito suas guampas se esgarçaram mantendo-se um pouco desatentos em se agregar. Na verdade, desligaram-se em algum tempo de quem lhe prouvesse a vida, ou quem sabe, não conseguiram manter-se verdes e a dona da terra condenou-lhes à secura, não por falta de serventia, mas simplesmente porque estava na hora.
Desta feita ao invés de se vergastarem aos ventos adubarão as entranhas da terra.

domingo, 3 de novembro de 2013

Entardecer


A luz vai caindo como se fossem pequenas estrelas endoidecidas que sem rumo se jogam para todos os lados de forma única e durante alguns minutos vemos a paisagem se transformar em sombra. Negra fase do dia em que se aquietam os fracos trinados que já perderam seu poderio se entregando às forças da natureza que conspira todos os dias com o presente da noite.
É nesta hora que o coração começa a bater mais fraco, a mente se aquieta e se volta para os milagres da natureza que vertem com simplicidade toda a sua personalidade.

Chega então o tempo da meia luz e é neste momento que o ar se rende aos ventos, que as nuvens se evadem dos céus em busca de outro canto para dar sua sombra ou suas chuvas. O clima se enche de aromas estranhos dando lugar a perfumes encantados como se fosse uma purificação e um pedido de perdão pelo dia hediondo que agora escapa facilmente por ordem da natureza. Derradeiro, se transforma em um longo suspiro de adeus.

Após o reinado do lusco-fusco encontramos as sombras se fundindo com seus personagens formatando figuras que não são claras a olho nu. Assim se forma a rede que nos açoita em cansaço e nos derruba em sono. O adormecer entra de supetão contando outras estórias, enchendo o ocaso de fantasmas que se divertem em nos fazer ir e vir em assuntos dos mais variados uma vez que estamos rendidos em outros braços com a negra luz da noite a nos embalar.

Do céu ao inferno como o preto no branco.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...