quinta-feira, 21 de abril de 2022

O Mergulho

 

Talvez seja tarde demais para pensar em voltar atrás, olhar com paciência sobre o ombro para a trilha mais escura do caminho, de fazer uma ou outra revisão da passagem lembrada, inclusive aquela relegada ao canto escuro da memória, guardada a sete chaves em caixa forte de prata, outra jogada no lixo da história antiga e talvez algumas poucas que são o restolho da rotina recente. Entretanto, pode ser que do jeito que o tempo voa o clima instável tenha varrido da face da terra inóspita da alma tudo o que foi relevante. 

Fico na dúvida se devo mergulhar na escuridão esperando que eu mesma trouxesse à luz o que foi perdido que, por algum motivo propositalmente foi afastado por não sintonizar nenhuma farpa de serventia naquele momento e se assim o foi, estarei traindo a minha própria decisão. 

Um tempo remoto está enredado em uma teia supérflua de fatos que se embaraça e demonstra apenas a fragilidade da aparente firmeza com que se apresenta, gerando um temor no desejo de destrinchar o emaranhado. A imersão no denso embrulho da vida pode ser vital para a recuperação do tempo perdido, pode significar uma cura de ferida que não cicatriza, pode alegrar um dia triste, pode ser o fim de uma grande dúvida que era preservada como segredo. 

Ao mergulhar no mistério profundo da mente surge um brilho que se espalha mais intensamente em alguns pontos, como se fossem vagalumes perambulando na mata escura, apontando este ou aquele caminho mais afeito a ser lembrado, aquele momento que ficou escondido por conta da pressa em queimar etapa, àquela hora de insegurança para avizinhar-se de não se sabe bem do que. Emergir da escuridão salva a intenção de viver o dia a dia mais íntegro e sem mistério.

 

 

 

sexta-feira, 15 de abril de 2022

A Paixão de Cristo

Ele vem resplandecente para a circunstância que se apresenta carregando em seus ombros magrelos tantas ofensas, tanto desprazer, mal feitos, ataque à sua própria carne com a traição rondando sua sombra nas beiradas de sua vida peregrina. A difícil caminhada culmina no fim da trilha, repleta de desconversa, de amor e ódio atravessando muralhas de ocasião.

Eis diante de Deus Pai um corpo com a carne dilacerada, com veios de sangue que lhe cegam o olhar, com uma magreza de causar dó e assim também os filamentos de tortura que não estancam enquanto vivo ele é. A fronte, que deveria simbolizar a ternura infinita pelos seres humanos se dilacera em mil pedaços rubros de tristeza, que um tanto sem jeito vão se acomodando pelo corpo em sofrimento, mas em nenhum momento se apartando dela. Por entre todas as feridas ele podia ver que sua missão estava cumprida e seu corpo oferecido em sacrifício é a paga pelos pecados da humanidade.

E como se assim não bastasse, o corpo que se esvaía de vida estava ladeado por dois seres que de algum modo não seguiram a cartilha que lhes foi oferecida, enquanto ainda havia salvação da alma. No entorno ecoava blasfêmias de todo o tipo, mas apenas um dos transgressores aproveitou a última oportunidade para a redenção.

Talvez houvesse nesta alma desviada algum conhecimento de quem era o pregador que instava à sua frente, concedendo-lhe a absolvição para poder então viver uma vida eterna. Quem sabe este súbito arrependimento se esconde no mais recôndito espaço de sua mente, quando, ao invés de correr para ladroagem resolveu estancar o passo ao pé da montanha e ouvir as palavras do Peregrino que era seguido por milhares de fiéis. A semente foi plantada na alma do pecador, brotando no último instante para que o Filho de Deus fosse reconhecido e mais uma vez, em um último suspiro, buscasse a absolvição.

Este fim de caminho foi costurado com fios resistentes como a personalidade de Cristo que em sua passagem predestinada a salvar a humanidade, ora permite que sua vida seja ceifada, embora prometendo que voltaria. E então, no terceiro dia após sua morte, vestido com brancas vestes e com todas as suas feridas cicatrizadas, ele rasga a atmosfera e sobe para se sentar a direita de Deus Pai. Aleluia.

terça-feira, 12 de abril de 2022

Sem resposta

Localizei o velho telefone com fio em um cantinho do sótão, numa posição que parecia proposital, porque além de desconectado de sua antiga linha fixa o fone estava displicentemente fora do gancho, dando um recado de que por ali não passaria nenhuma voz longínqua, nenhuma risada, nenhum papo firme sobre coisa nenhuma, nenhuma noticia alegre ou triste, nenhuma voz embargada de saudades e muito menos soluços de tristeza e decepção. 

A conexão estava vazia de propósito havendo apenas a lembrança de tempos idos em que o aparelho aproximava todas as vozes, de todos os lugares, de todos os timbres, de todos os sotaques, de todos os idiomas da maneira mais lúdica e emocional que se pode imaginar. 

O telefone antigo fazia parte da mobília e em torno dele sempre havia um aparato de decoração que abrangia um móvel que lhe conferia pompa, circunstância e conforto para atender o aguardado tilintar estridente que ressoava pela casa desencadeando uma correria desabalada para atender em tempo hábil, quase sem fôlego, o tal chamado. 

O contato sempre tinha a importância devida de um enamorado que aguardava um alô, uma mãe saudosa do filho que se lançou no mundo, de noticia boa demais e outra triste de causar dó, mas, mesmo assim sendo necessária a importante transmissão sempre em ocasiões especiais. 

A imagem do aparelho relegado a um cantinho do sótão em postura displicente sugeriu que ele estava mandando um recado de que, ora em diante, não existe mais um lugar com aparato especial na residência, a relevância se volatizou, a conversa emocionada se rendeu a banalidade, o conteúdo do diálogo longínquo foi relegado a palavra abreviada, a voz ficou sem ar e as perguntas sem resposta.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Um pão e quinquilharias

 

Neste dia longínquo e solitário onde a rua parece natureza morta vem bem a calhar um passeio por aí carregando na bagagem apenas um pão e uma bolsa velha com quinquilharias que serão examinadas com lupa na hora da parada embaixo de uma velha ponte em desuso, um riacho na beira da estrada, um tronco de árvore caída de cansaço de tão fustigada pela natureza. Vai assim me parecendo que o passeio veio em boa hora, porque ao repassar um velho caminho o barulho das rodas da bicicleta no cascalho são musica para meus ouvidos moucos para muita coisa. 

Na primeira curva surgida fui fechada por lembranças tão antigas que ficou fácil me largar ao chão e buscar dentro do velho alforje alguma prova concreta que me remetesse de verdade ao antigo, ao memorável, ao já vivido e que a passagem do tempo deixou por aí como se de nada valesse. 

Encontrei no fundo das quinquilharias um caderno com páginas amareladas e completamente vazio de escrita. Rescindia a papel velho, mofado e por este motivo imaginei que ali ficou jogado por não ter sido valorizada a palavra escrita em tempos mais remotos. Pode ter havido um “branco” criativo que relegou este receptor de ideias sem vida. 

Alimentei-me com aquele pão sagrado que levei na garupa sentindo um pouco o gosto de vida e animação que percorreu meu corpo já cansado, evidentemente, pois aventuras deste quilate já não é mais minha prioridade, mas, tenho uma desconfiança que é apenas um movimento atávico que me assalta e me empurra para a aventura do dia. 

De curva em curva cheguei ao fim da estrada onde resolvi me arranchar e debulhar a traquitana da bolsa abarrotada que decidi, de ultima hora, dar uma carona, talvez para me prover de distração enquanto as pedras do caminho me atrapalhavam. 

Ao olhar para trás eu vi a estradinha serpenteada de curvas me desafiando para voltar ao destino inicial e com certa ironia não arrematei o conteúdo e fiz o caminho de volta agradecendo a natureza calma do dia que me empurrou com sua brisa pelo caminho que agora parecia pavimentado e tranquilo sem a caroneira. Achei engraçado que a vinda foi recheada de percalços e pedregulhos e o retorno foi inusitado e tranquilo.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...