sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Como se vive

  

Como se o mundo fosse pequeno e as pradarias tivessem limites, as montanhas barrassem o prado, o pântano secasse, o planalto submergisse, o espaço físico se extinguisse e por estes motivos inacreditáveis instala-se o modus operandi de viver amontoado uns sobre os outros tendo como primeiro mandamento a obrigação de viver com os seus desiguais, compartilhando os espaços que para uns é bom para outros e ruim, se desabituando do que é adequado para si para ficar em duvida, acordando para ter de apenas ouvir as ordens, calando-se em um abatido uníssono. 

E assim vai-se andando a par e passo, abrindo mão aqui e ali de muito, tudo ou quase tudo de suas crenças e gosto e deste jeito arrevesado se torna uma vida onde os dez mandamentos cristãos não bastam, a cartilha do não está pendurada em todas as paredes, pregada nos quadros, colada nas escadarias, nas entradas, nas saídas. Que beleza ter uma vida assim tão organizada pelos outros não havendo mais a tarefa cognitiva de pensar e estabelecer seus ritos sagrados. O brete se multiplica e se expande parecendo não haver jeito, modo ou alternativa para correr, fugir, se esconder ou quiçá ir para o outro mundo que te acena, logo ali com o sorriso redentor. 

Cala-se a voz, o griteiro arrefece, a garganta se aperta com leve nó para que o dito cujo possa respirar somente pelos poros, na sequencia uma suave tentativa de cingir os ombros como se fosse um abraço traidor e está feita a conversa onde somente um vocifera e o outro possui apenas o olhar arregalado e ouvidos para ouvir.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Por fora

 

Corre por fora e a boca pequena que está em andamento aquele carregamento de trastes praianos que invadem o território todo santo ano, ou desdito calor de época. Serve empilhar a massa inútil no porta-malas, na caçamba do caminhonetão, no engate, o que for. Parece não haver lugar para depositar tanto apetrecho que temporada vai, temporada vem, segue a trilha do asfalto para se escarrapachar na areia bagunçando o coreto que vai das ágeis tatuíras até os risonhos golfinhos, lobos do mar e botos, estes, mais carrancudos, mas cara feia é serventia da casa e ignorada solenemente, assim o pisotear segue como mantra uníssono da massa estabelecida a trair todas as regras. 

Urge que carreguem no bagageiro extra, na bolsa, na sacola de praia, na mochila os maus modos que os trouxeram até o areião principalmente em momentos mais delicados onde tudo o que é parece não ser e vice-versa. Ontem pairava no ar a maresia bem vinda ao amanhecer dos dias cálidos de início e fumegantes ao largo do passar do tempo incendiando a mufa de muitos e poucos optando por salvar-se ou, pior ainda, sequer conseguindo correr por fora. 

Há muralhas invisíveis em todo o lado lavradas no cáustico dilema entre o bem e o mal gerando controvérsia que vai então unindo o amontoado que se estabelece sem e com razão que até a própria causa desconhece. Chega ao fim o período sem lei, aborta-se de pronto todas as inutilidades que o calor cria, vão para o fim da linha as urgências descabidas e de ocasião, dissolve-se a importância do desimportante e faz-se a escuridão no mal feito. 

A luz ainda é muito fraquinha e não consegue assim, tão repentinamente – não tardiamente – alumiar os velhos caminhos que por ora estão livres para que a normalidade se estabeleça minimamente. A cada temporada que passa tudo ou quase tudo tem de ser revisto, consertado, limpado, lavado, renovado. Assim é bom demais levantar a cabeça, lavar o rosto e mostrar os dentes em belo sorriso ao sol de cada dia que volta a nascer apenas para quem fica. Voilá!

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Como se fosse

  

Queria que fosse sempre assim, que eu estivesse sentada à deriva, olhando para longe com desejos de não estar ali e provavelmente em lugar nenhum mesmo bem abrigada de um suposto vento frio que teima em se ausentar - por hora - nos lados tropicais da vida e o toque colorido lembrou-me que é bom dar uma animada no momento presente e pintar de cor de rosa choque o futuro. 

Porém sempre tem um bafo na nuca imperceptível como se fosse uma brisa suave que nasce do quadrante errado naquele dia, e vem se amortecer nos arredores parecendo querer lembrar que ainda não se desanuviou o tempo do descalabro de tantas palavras vãs, de tanto verbo jogado ao vento norte, de tanto adjetivo que se esfumaça como maresia no amanhecer de verão desaparecendo como por milagre da minha frente, ou do meu lado. 

O livramento se deve a estoica luta para liberar o espaço que confundiu verdade com mentira, amizade com interesse escuso, parceria com traição simples e certeira deixando meu entorno agora liberto para ser o que deve ser seja lá o que isso quer dizer ou significar. 

A varredura veio até mim como uma ressaca braba do mar que sem dó nem piedade arrasta o que lhe aparece pela frente alisando como cetim as areias praianas, lambendo o chão de quem se atreveu a pisotear e ferir, arrumar o que estava desarrumado deixando assim que os novos ares calmos que soprarão tenham alternativa de ajeito e peremptória vontade de, hora em diante, acertar. Quem sabe menos cinza e mais cor de rosa.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...