segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Moça danada


Fui inventar de olhar para trás e não deu nem tempo de me arrepender porque lá estava eu imersa na fumaça que empana as lembranças e assim, de costas para o agora e de frente para o que não existe mais, passei meu dia. Tenho a impressão que deve ter sido um tipo de acordo entre a vida e a morte que, em conluio, resolveu me testar e ver até onde eu aguentaria reviver o que não podia mais ser consertado, o que não devia ter acontecido, o que passou em branco e mais tantas palavras que não foram ouvidas e outras tantas deixadas fora do contexto assim como conversas importantes que sequer foram celebradas.

Confesso que não estou achando de muita serventia essa viagem forçada que anda me enchendo os olhos de lágrimas, que laceia meu corpo porque o esforço de repassar deixa minha ossada tensa e encrespada, sem falar na alma, que nesta hora resolve dar uma de corajosa e anda para trás com tanta galhardia que até parece que vai viver de novo.

Não vou dizer que parecia um filme passando porque a sensação era a mesma de trilhar uma picada que ia se mostrando aos poucos, com eventos acontecendo em tempo real e eu ali assistindo a tudo como se eu mesma fosse uma grande angular ou um caleidoscópio de acontecimentos. Espertamente tratei de selecionar o que eu queria ver e deste jeito fui enganando a torcida que queria a todo o pano me ver em desespero, colocar-me de modo que a minha vontade fosse não mais retornar, que me pusesse em guarda lá atrás e minha vida para frente não tivesse mais sentido, como se o tempo em perspectiva fosse tão exíguo – e, pensando bem, o é – que o passado seria meu principal algoz e minha prisão.

É assim mesmo que funcionam as lembranças, elas emergem do fundo do nosso coração e se postam em frente ao tempo presente desafiando o nosso desejo de fazer consertos nos retratos fundidos a ferro e fogo na nossa vida pregressa. Acordei do delírio fantasmagórico e corri para o mar. Um banho de descarrego nesta hora foi o que bastou para limpar o que veio à tona por puro acaso da vida, esta moça danada que volta e meia dá uma sacudida para verificar se estamos atentos.

Nenhum comentário:

Papelaria em dois tempos

  Não sei quem me encontrou primeiro, se aquela papelaria antiga ou eu, que ando gastando a sola do sapato atrás de quinquilharias que lembr...