sexta-feira, 31 de março de 2017

A concha acústica


Ninguém na beira do mar neste dia, em meio de semana outonal, neste lugar ermo, porém cheio de movimento e assim a caminhada se anuncia em uma pista deserta, límpida. Ela, com seus segredos, suprem o peito do vazio que somente a natureza pode proporcionar e, acreditem, alimentar, assim como um vácuo que se auto preenche, porque muda a cada minuto de feição. Portanto, a paisagem que em um momento surge diante dos olhos calada, reaparece em seguida em grande prontidão.

E foi deste jeito animoso em uma borda litorânea - que pouco a pouco retoma sua rotina e permite que apenas bichos ocupem o patamar das ondas - que ela se jogou aos meus pés, intacta, linda, úmida de sal marinho com um colorido esmaecido em sépia que confere as suas rastejadas no fundo do mar, perfeita em todo o seu desenho e sublime como obra da natureza que é regida pelo universo maior. Veio mansamente embalada pelas ondas encrespadas e profundas em espuma e assim, lindamente, se depôs ao rés da areia, disposta ao mundo.

De pronto, sua beleza emociona e não se tem olhar suficiente para esquadrinhar cada linha que compõe sua estrutura aparentemente frágil, desenhada com toda a certeza para quem tiver a graça de recolhê-la nestas paragens mais habitadas e assim, possa ter a experiência de escutar em seu côncavo todos os seus segredos.

Fico assim, talvez um pouco sonhadora, pensando no que eu gostaria de ouvir dela que vem de viagem, que abriu o seu ser liberando a vida que lhe habitava e que agora se encontra sozinha a vagar por ai, talvez um pouco perdida porque o seu intimo se foi e um espaço se abre em seu interior, com um fundo de uma joia de madrepérola. Surge ali diante dos meus olhos, sem porosidade alguma, um berço escorregadio, brilhante e refratário a tristezas.

O design que a qualifica a usufruir o status de obra de arte em que a mão humana sequer depôs seus dedos, oferece a serventia de se utilizar o artefato como um meio para ouvir todas as algazarras do oceano ao se afastar um pouco dele. Um jeito mágico de carregar os rumorosos ataques do mar, quem sabe captar algumas vozes remotas, algum pedido de perdão pela ausência, uma solicitação de mais cuidado, um alô atemporal, um pedido de socorro. Agora, esvaziada, a concha acústica nascida nas profundezas do mar se joga na praia a procura de outra história.


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