domingo, 1 de janeiro de 2017

Avesso


Naquele dia acordei e percebi algo errado, antes mesmo de abrir os olhos, pois não me entrava nos ouvidos os sons peculiares de minha morada, o mar não me enviava seus bons dias começando surdamente e se intensificando se eu demorasse a ir lhe cumprimentar ou, ainda melhor fazendo, correr de pés descalços a lhe fotografar, o que o fazia ficar orgulhoso que só vendo.

A nossa rotina de encontros da manhã era sempre combinada com as variantes, então, para finalizar o conjunto da obra retratada se pedia que o vento parasse um bocadinho, que as nuvens se ajeitassem no horizonte para que o sol se filtrasse com maestria por entre elas, se cochichava com os cardumes para saltarem bem na hora do meu flash, se implorava ao mar que alisasse as areias para que o rei melhor se refletisse. A rotina do despertar dos praianos quase não muda, apenas fica à mercê do tempo, que adora se fazer de rogado e brincar vez ou outra de ficar mais sem graça, mais feioso, revoltoso. E deste jeito paciencioso e lhe conhecendo os humores, em todo o recomeço ouso eu também brincar de esconde letras, esquecendo as melhores palavras ou fazendo de conta que naquele dia a folha em branco se eternizou em minha frente e assim vamos nós, brincando a vida.

Nesta data, porém, nossas regras não escritas tomaram um chá de sumiço e ao abrir os olhos o mundo havia mudado se apresentando com outro figurino, travestido de grande coisa, como se nestes tempos de parcos calores e de folgada agenda, tudo se permitisse.

O vento se calou e os sons da natureza foram substituídos pelo estrondo do mundo, o rugir do mar se recolheu dando ouvidos a maratona de carros, os pássaros fugiram dos seus ninhos e por ora estão em paragens mais silentes, os areais da beira do mar recrudesceram, os mariscos se contorceram em pontas se internando em desabalada carreira para os confins da terra, assim como os tatuíras seguiram no mesmo destino. Para completar, a revolta da natureza licenciada pelos moradores assistiram os caranguejos se infiltrando nas dunas com a justa intenção de passar a temporada fora da linha de tiro. A paisagem se desfigura como uma tormenta que chega com o proposito de desacomodar tudo o que anda nos trilhos e, deste jeito o pacato lugar aguarda que o avesso instalado dê o fora. 

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