terça-feira, 31 de janeiro de 2017

A agenda


Era um tempo em que acordar significava uma dúvida sobre seguir em frente, amornar as ideias um pouco mais e deixar-se ir aos devaneios, ao etéreo da vida, afastar-se de preocupações irrelevantes que povoam a agenda que, diga-se de passagem, ficou tão exígua naquele minúsculo caderno que se apresenta ali apenas como intenção.

Não se faz mais urgência em anotações pelo simples motivo que o andar da carruagem não tem mais premência e o tempo que rege as atividades tem outra contagem, outro perfil e uma garantia que as histórias que serão contadas daqui para frente terão proveito real e não, especificamente, serão escritas em folhas de papel marcadas.

De agora em diante ficam as lembranças do caderno vasto, mapeado em cima da mesa com todos os dias da semana, rabiscados, riscados, apagados e garatujados com tanta frequência que mais parecia um diário de vida. Uma prova de vida ou de morte e se esta fizesse uma visita certeira os familiares conheceriam com absoluta garantia os últimos passos do defunto, e de quebra, poderiam medir seu prestigio, se havia segredos ocultos, se gozava de boa saúde, se possuía muitos amores ou nenhum ou, se apenas andava com uma rotina desumana e por esta causa foi parar do outro lado.

A marcação da biografia neste mundo que tenta dominar papel e rotina é realizada a partir de dispositivos em que a mão do seu autor não marca presença autoral, porque os esquisitos sensitivos vão monitorando as atividades e assim assinalando em seu apócrifo digital o que mais favorece ao sujeito. A partir daí, a agenda sub-autoral vai acrescentando datas que desconhecemos, adiciona personalidades incógnitas ao rol de amizades, marca festas que jamais frequentaríamos, apresenta empresas sem relevância e conteúdo, sugere amizades irrelevantes ao nosso perfil, expõe o dia a dia de gente de somenos interesse, apresenta artistas que em nada se adequa ao nosso gosto musical e artístico e por ai vai a inundação supersônica desta agenda digital, que em muitos casos, vem para substituir o caderninho. Ah, aquele simplório artefato que pequeno ou grande faz de nossa vida um tabloide de grande utilidade para nossos familiares e para nossa própria revisão. Vai que ano que vem tudo muda.

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