sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Sabiá



A noite nos cobre em silêncio com seu negro manto e mesmo que haja barulho lá fora, em tudo se aquieta a vida, ela, que durante o dia comanda todas as ações conforme sua fase, claro, bordejando entre o bem e o mal. Não existe meio termo quando o sol se alevanta e a negra atmosfera surge após, com suas características e surpresas, pegando a todos desprevenidos quase sempre.

Afundamos na escuridão por livre iniciativa, a mente buscando a paz e o corpo querendo se esvair em partículas mínimas para não pesar. Nada sólido apetece nesta hora muito menos pensamentos confusos e assim etéreos como anjos avançamos na madrugada densa e por isso mesmo desejada. Bom demais tirar a fantasia e as máscaras que amarrotam nossos desejos, rasgam nossas propostas, furam nossos olhos com o inominável, surripiam nossas convicções tirando de campo, por um momento, a vontade de ser.

Desnudos da vida real neste horário eis que surge um personagem gritante em meio à bruma gelada e úmida da madrugada. Difícil acreditar, que ao invés do terror noturno, dos sonhos inconfessáveis, do descanso da agitação amorosa em meio aos lençóis, da paz conquistada uma vez que o dia caiu, possa haver tal intromissão que pia incessantemente através do sereno da noite.

Ele chega altaneiro e como dono do silêncio escuro resolve conceder seu trinado para dar o contraste aos sonhos desesperados que varam o buraco abissal que se constitui a noite, para alguns muito, para outros nem tanto e até pode ser que para vários, nenhum.

A cadência do Sabiá empurra para o lado a faina ignóbil do sono trazendo a acústica de volta, só que desta feita, com cantorias que talvez mereçam serem ouvidas mesmo que maçantes em sua melodia, porque o Sabiá é monocórdio.

E assim, mesmo sem querer, o nirvana cerebral absorve o concerto qualificado que lentamente consegue abrir as gavetas fechadas dos nossos medos, desencantar o pesadelo sem fundamento, desmanchar os fantasmas que se incluem como visitantes indesejados todas as noites. A insistência do trinado repetido e melancólico nos traz de tudo um pouco.

Um comentário:

Leviton disse...

Gostei muito, nesta época de final de Inverno, até o início da Primavera, somos agraciados com os cantos dos Sabiás, marcantes principalmente nas madrugadas, quando o silêncio é rompido por suas belas melodias. Todos os anos espero por este momento, onde os Ipês florescem e os Sabiás nos presenteiam. Deus permita, que a natureza não se modifique.

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