sábado, 28 de novembro de 2009

Infancia



A vida de hoje é marcada pela nossa onipotência. Nunca em tempo algum me defrontei comigo mesma em tal fissura de decidir.De esbravejar contra o destino e forçar o caminho. Os consultores de RH não me deixarão mentir porque são os especialistas em pontuar tudo o que o desgraçado do profissional tem que fazer para chegar no topo, na excelência, no ISO, no funcionário padrão. E subir, subir, subir....até cair.

Na vida. É a tal de regra para todo lado.

E a liberdade, arrotada com estrondo aos quatro ventos, nos faz sentir onipotentes e donos da nossa vida e caminhos e, em todos os conselhos recebidos, o pecado mortal é deixar a vida acontecer. Não se deixe manipular pela vida. Você tem que dominá-la. Enxergue-se! Aí, surtei. E lembrei, carinhosamente.

Dos meus sete anos, e minha ida à escola ( naquele tempo se ia à escola SOMENTE , aos sete anos. Até então, brincava-se de bonecas e vadiava-se o dia inteiro.) Era inverno rigoroso, minha mãe me acordava invariavelmente de manhã bem cedo, adentrando meu quarto e abrindo as janelas com estrondo, dizendo: “tá na hora, o dia está lindo temos que aproveitar”. Engraçado, não importava o clima, o discurso era sempre igual. Talvez achasse que fosse me animar. Mas não tinha jeito. Eu sentava na cama, atordoada e muda.

Então, minha mãe vinha e me erguia me fazendo estar em pé. Levanta um braço e depois o outro e uma perna e depois a outra me livrando do delicioso pijama de pelúcia, quentinho e de tão velho, meio furado. E o processo continuava até eu estar vestida com o uniforme austero do colégio de freiras.

Eu não dizia palavra. Deliciada, me deixava comandar. Após vestida, a ida ao banheiro, a babá se encarregava da higiene, de prender meus cabelos rebeldes uma vida toda, num lindo rabo de cavalo. E a me chamar de “andeja” porque eu fazia cara feia ao vê-la me desembaraçar os fios sem piedade e com pressa. Ainda calada, apenas me deixava levar, saboreando cada momento sem decisão própria. Fico nostálgica em pensar naquele tempo em que amorosamente era preparada para viver o dia. Nossa onipotência no comando da vida, não nos deixa viver.


2 comentários:

Eduardo Lara Resende disse...

Muito bom esse relato com nostalgia de momentos de preparação para ir à escola "somente a partir dos sete anos"... Agora, a vadiagem que V. cita, até os sete anos, talvez seja um dos mais importantes tesouros perdidos. Mais tarde a gente pode encontrar algo parecido (só parecido), com o nome de ócio com dignidade. No entanto, nada a ver a não ser a vontade de que fosse, mesmo, aquela vadiagem.
Muito bom!
Abraço.

Anônimo disse...

O conto sobre a onipotencia é genial - porque vai num sentido..... e resgata insuspeitadamente um ícone da infância.... e daí cria um brutal contraste entre o novo e o antigo.


Acho que este conto "pega" todos acima de uma certa idade...rsrsr
carlos

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