domingo, 22 de agosto de 2021

Portabilidade

 

Pé-ante-pé e vagorosamente resolvi dar uma espiada por cima do muro invisível que me cerca e que nunca ouso explorar por haver adquirido uma forte indolência e certa acomodação da minha curiosidade com as coisas que trafegam do outro lado. Afinal, como ter certeza que fazer uma portabilidade de assuntos de menor importância irá ter um resultado mais que perfeito nas minhas intenções mais honestas e verdadeiras que, de tão consolidadas, dão nó em pingo d’agua. 

Mas, vez ou outra gosto de arriscar o que desdenho por princípio só para ver se ainda sou a mesma ou se ando por aí travestida de outra, fingindo comportamento que sofreu mudança sem que tenha percebido e assim, nas escuras, minhas mascaras vão se alternando sem motivo aparente, ou apenas rastejando com intuito subliminar a minha alma. 

Por este motivo bem pontual, neste dia parado e morno em que a natureza resolveu dar uma pausa em si, achei por bem ousar e espiar o desconhecido e assim me despi da preguiça e enverguei a capa da desenvoltura porque deste modo preventivo fica mais fácil desistir da estripulia e voltar a ser branda. Fiquei mais atenta e me senti como se fosse um espião da vida ao investigar se existem de fato melhorias próximas a mim, e, se houver prometo que vou calibrar o novo cruzando com o velho que me acompanha, farei um “noves fora” e me darei por satisfeita com o resultado. 

Para minha surpresa o que se deu a ver ali do outro lado eram apenas episódios mambembes e vazios de significado que talvez ali tenham se instalado apenas para provocar uma curiosidade que de minha parte feneceu de há muito, exatamente porque minhas convicções nunca se apartaram de mim e assim cheguei a conclusão que na minha seara tudo corre bem  a despeito das armadilhas que vez ou outra me deparo.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Um tributo

  

Encontrei aqui uma caixa pequena, bem antiga e ao abri-la me surpreendi com seu conteúdo com lenços de delicada confecção, debruns rendados em tecidos delicados muito bem assentados rescendendo a uma fragrância com um misto de sândalo e patchouli o que suscitou em mim lembranças remotas, talvez da infância, da companhia de minhas avós - quiçá minha mãe - que utilizavam lenços delicados colocados com sabedoria junto ao corpo para atender qualquer eventualidade de um cisco no olho, uma lágrima furtiva ao se deparar com uma lembrança triste ou o dia simplesmente não surgiu com bom humor. 

Fiquei imaginando que em outros tempos as lágrimas eram mais secretas e da mesma forma os sentimentos estavam guardados em um espaço tão profundo da alma que parecia ser impossível tirá-los de lá para enfrenta-los com um olhar em perspectiva, com uma distância interessante de análise de todos os ângulos e parcimoniosa paciência uma vez que sentimentos, sofrimentos, decepções e dores – inclusive físicas – não tinham a anuência para se manifestar e estes lenços se tornaram aliados dos humores da vida que eventualmente escureciam o olhar das nobres mulheres. 

Tomei a decisão de voltar no tempo e fazer a minha própria caixa de lenços que não terá o feitio dos antigos, mas posso imaginar que os terei em linho fino em cores as mais diversas e todos dotados com fragrâncias delicadas e instigantes para me fazer lembrar que naquele exato dia minhas lágrimas serão absorvidas pelo pequeno pedaço de pano criado para abençoá-las. 

Em outro dia o pranto pode vir de motivo difuso, concreto ou fantasioso no breve momento em que saiu da minha mira a realidade do dia a dia se esfumaçando no horizonte e me deixando a ver navios. Imagino que as cores irão determinar para onde minha vista irá aportar para buscar o conforto no momento de me desfazer em lamúrias. Não as furtivas de antanho, mas as mais legítimas que tenham permissão de rolar com abundância pela face. Na sequencia deste arsenal do pranto eu colocaria, com muito cuidado e capricho, os tons da alegria para que o contraponto do contentamento se equilibre com a agonia.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...