sexta-feira, 14 de junho de 2019

Vou partir



Ao adormecer, antes mesmo de chegar à cama, determinei meu destino doravante. Vou partir. Não haverá quem me detenha e fico pensando que já não é sem tempo uma vez que este desejo ronda meus sonhos todas as noites e agora chegou a hora de colocar o pé na estrada sem receio. Eu digo sem covardia porque minhas maletas já estão lotadas e organizadas, pelo menos dentro da minha cabeça. Conheço minhas preferências.

O mais interessante desta ação se concentra no fato de que ao tentar arregimentar roupas, objetos e quinquilharias com certa ordem de necessidade, surpreendi-me com um cansaço físico fora de hora, para dizer o mínimo. Olhei no entorno para verificar a separação e me surpreendi, porque ali não havia sinal de carregamento. Não havia casacos, calças, saias, vestidos, blusas, brincos, pulseiras, sapatos, cintos ou bolsas. O que se apresentou a mim foram acontecimentos, datas, coração partido, alegrias efêmeras, tristezas profundas, perdas inconsoláveis, parcos regozijos. Motivos, os mais diversos, muito mais do que eu podia lembrar. Quiçá carregar.

Minha resolução férrea em relação ao meu destino ficou mais forte ao perceber que a bizarrice de minha partida passava pela falta absoluta do que levar de bens materiais. Sumiram como névoa da manhã, esconderam-se como se culpados fossem, desapareceram completamente da premência e da falsa necessidade que lhes dava corpo e alma.

Fiquei cercada pela minha existência real, aparentemente acotovelada em situações, todas querendo fazer parte do pacote de arrancada, mesmo aquelas circunstâncias que não tiveram, em si, tanta relevância ou tanto amor envolvido. Fiquei indecisa e bem confusa, mas inspirei um ar de paciência para poder organizar meu plano de evasão sem ter de suportar o que eu já havia tolerado em tempos outros.

Aparece então, rodeada de importância, a minha autonomia para fazer a partilha. É chegada a hora do juízo final ao qual me ajoelhei em prantos para poder seguir em frente. E assim, no este fica este outro não, fui racionando os pedaços da minha caminhada tendo o cuidado de fazer um isolamento justo, pois afinal, as duas valises que eu decidira levar não se sobressaiam por serem espaçosas. Muito pelo contrario. Também considerei que a iniciativa teve de arcar com apenas peso emocional, mas eu não tinha tido opção, no bota-fora, urge que se leve a alma, mesmo repatriada.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Tempo severo



É um tempo estranho este em que o céu se anuvia de tal forma que parece que São Pedro disponibilizou um tempinho para realizar uma limpeza geral na região, e esta, a litorânea, abençoada por tantas águas, se limita a receber as tormentas se agregando a elas. A euforia é geral da natureza porque pelos córregos se vai de um a outro lado nos braços do aluvião nervoso que carrega em suas entranhas aquíferas toda sorte de traquitanas, tanto as do bem maior que é a natureza se movendo, quanto aqueles que ali foram depositados por engano, ignorância ou sabe-se lá. A verdade é que são lágrimas do céu que purificam a terra, a água, o ar.

Foi deste jeito aguado que vi em meu entorno mais um dia em que o aguaceiro caia mansamente, parecendo que agora, depois da estripulia que arrumou na beira da praia, depois que os cômoros andaram para cá e lá, depois que as pedras mais pesadas pararam de resistir e trocaram de lugar a vida se ajeita em um tom cinzento. Nem sempre o brilho dos raios solares – que anda em outras paragens – verte luz para o escondido e com esta impressão saí de casa. Recolhi o guarda chuva já na saída lançando-me à molhada e deserta rua.

Minhas galochas avançam com celeridade pela praia mar e com certa alegria vou percebendo que a chuva devolveu à natureza alguns - muitos – dos seus elementos naturais, como os que vieram embarcados nas aguas do riacho desde lá da serra, como os que encalhados em algum vão inusitado do córrego vêm com toda folga dar as caras na beira da praia, colorindo de verde nossas beiradas arenosas. Alguns galhos que foram desgarrados dos seus troncos se exibem na costa rolando com volúpia aos mariscos e algas que amam se agarrar em alguém para sobreviver. Lei da natureza tem bons olhos nesta fauna marítima onde sobreviver é a conta do dia.


Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...