domingo, 20 de março de 2011

Coma



Deitado na maca com seu corpo em mil pedaços facetados tinha apenas a pele guerreira lhe ajuntando como se fosse ela, neste momento, o único elo de esperança.

A morte, bafiando a nuca do coitado estirado com os sentidos já amornados ouviu a recusa de seu convite, por ora.



Seu olhar de azul celeste se agrandou, apertou, movimentou-se no entorno e lentamente seus cílios se sobrecarregaram tanto que ele foi obrigado a seguir o pedido do corpo, quentinho do trauma. Cerrou os olhos e se foi.

Não sem antes dar uma espiada na vida que lhe queria passar a perna e se aperceber que talvez fosse melhor negociar.

É nesta hora do coma que a matéria e scangalhada do pobre se abre às mil parafernálias médicas terrenas. Tanto osso quebrado, tanto desvio do esqueleto, tanto sangue para drenar. Os músculos, outrora fortes se deixam ficar derreados porque seu bravoso dono não está ali para lhes dar alma e treino forte para se fortalecerem.Todo o bucho assim se comporta, sem coração batendo pelo seu sangue quente e ousado, estômago e afins na carência do alimento que seu dono aguerrido costumava lhes servir. Todos lhe sentindo a falta, ora veja. Todos em compasso de espera do indivíduo que agora está sob o comando de máquinas, fios, cabos, sinais em telas, seringas, agulhas, plaquetas de aço, porcas e parafusos.

Uma vida por mil cabos.

Não acaba aí a vida em suspense do herói. É neste momento que começa a negociação e seu espírito é buscado e conduzido pela equipe mais perfeita do Universo. Começa o tratamento, propriamente dito.

O corpo desfeito como uma carcaça vislumbra um sopro de vida neste lugar onde gravitam os socorristas que estimulam a brasa de vida que persiste no espírito deste homem. Assim lhe são feitas muitas perguntas, deste modo lhe são dadas muitas opções e também muito tempo para pensar. Ele se sente bem cercado de cuidados de todos os níveis passando de sala em sala, de hospital em hospital com vários profissionais que, juntos, ajustavam sua vida. Negociavam com ele. Que oportunidade!

A tarefa agora estava quase cumprida, e sua cura dependia de querer viver.

Não só de existir em si, mas de conhecer quais seus propósitos reais neste lugar chamado Terra, de sua utilidade para sua família, amigos, filhos e humanidade de uma maneira geral. Abdicar de seus sonhos buscando outros em seu lugar. Escolher outra perspectiva porque lhe sobra muito tempo. Adiantar planos antigos e colocá-los em prática. Visualizar que existem outros caminhos fora os já trilhados. A decisão era sua. Ficar ou comparecer ao Juizo Final.

Abriu os olhos.

domingo, 6 de março de 2011

Céus e terras



Com passadas cadenciadas, olhar afundado ao chão, seguia sempre do mesmo jeito, todos os dias, contorcendo seus pés nas areias macias, em alguns momentos, em outros lisa e dura como pedra. Aliviava todo o corpo tenso ao tocar este chão, diferente a cada dia enquanto o espírito nublava e arejava.

A cabeça pendia de um lado e outro, vagarosa, acompanhando o vagar insuspeito do pensamento. Os ombros fortes se negavam a seguir o ritmo do olhar se deixando ficar firmes mas parecendo inconsoláveis. Assim toda a massa física se comportava.

Seguia lento no pé ante pé, absorto, e não via nada do que acontecia ao redor. Tão inexpugnável que poderia acontecer o que fosse, que do fundo da beira da praia aquele olhar não levantava.

A visão descarada se projetava como um ímã nas profundezas do solo como se ali estivesse o seu vôo, calculado milimetricamente como tão bem fazia entre nuvens. Seu corpo no costume do vôo solo, ouvindo o silêncio azul dos céus, brincando de esconde-esconde com nuvens em polvorosa querendo se esvair em águas, absorto em sofisticação tecnológica e comandos determinantes que resolviam todos os seus caminhos.

Agora, são tatuíras que passeiam em sua frente e mariscos lhe ferem os pés. Magnetizado cada vez mais pela superfície praiana, adentra por entre caranguejos, galopa no dorso de cavalos marinhos, nada em cardumes, descansa no casco da tartaruga gigante. Se esconde de si mesmo nas algas e corais e foge das mães-d’água. Um exílio projetado que parece não ter fim.

Finalmente, ergue o olhar e diz: Oi !

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...