sábado, 1 de novembro de 2014

Voz


Os três amigos, O Prédio, A Menina e O Rio,  estavam encostados na barranca assistindo a tentativa de demolição do Prédio. O mais cínico de todos, O Rio, marolava satisfeito e vez ou outra jogava sua água barrenta nos operários que, estavam ali suando a camiseta, para derrubar o “combalido” prédio. Na conversa entre os três ele ameaçava inundar aquele maquinário e traga-los para as profundezas do seu leito. Mas era só conversa, estavam todos mais atentos ao destino que se cumpria, muito mais doloroso para quem se exauria na tarefa do que eles próprios.

Sereno, O Prédio se via ainda pela metade e divertia-se com a dificuldade em derrubá-lo, estavam todos tão pequenos ao seu redor parecendo querer domar um gigante, logo ele, sim, um gigante por dentro, por ter sido referência industrial por tantos anos, por ter sido objeto de desejo de muitos que queriam trabalhar ali e também por ter levado o nome da sua cidade para muitos cantos do mundo.

As marretadas já doíam na  cabeça da Menina que acompanhava os dois na via crusis que estava sendo esta empreitada. Não podia deixar de comentar a ironia que levou a este fim e tantas ameaças de que o Prédio iria cair, matar pessoas, uma vergonha estar ali, esquelético, mas de pé. A resposta veio rápida, porque o Prédio resolveu ficar erguido por mais tempo e assim agitar a memória e não se ver diminuído em sua importância somente porque iria virar seixo no chão.

A Menina, O Prédio e O Rio estavam encantados com o futuro que se avizinhava, pois haveria apenas escombros de um ícone histórico, tão empedernido que em hipótese alguma se deixaria abalar por lhe tirarem a vida de pedra. Já se vê quase como um amontoado de entulho no chão o que não invalida absolutamente sua memória. Muito pelo contrário.

O olhar dos três se voltou então para a cidade, a nova morada do Prédio e da Menina acompanhados de longe pelo Rio que, em sendo muito traquina, volta e meia se faz transbordar e invade a cidade para um passeio.

A combinação entre eles é que agora teriam uma missão, talvez até mais pesada do que simplesmente montar guarda no Prédio vilipendiado por muitos. Era chegado o grande momento de se engalanarem e fazerem uma completa varredura nos acervos culturais da cidade e buscar entre tantos alfarrábios pedaços do Frigorifico que nasceu ali, se desenvolveu e ajudou muitas pessoas em sua experiência e crescimento profissional. Sairão às ruas, aqueles dois, revisitando para trás cada passo dado, cada foto tirada, cada evento ocorrido, juntando todas as peças criando um grande caleidoscópio que se chamará trajetória.

Engana-se quem quis ver O Prédio sumir da face da terra. É neste momento que a luta será urdida porque O Prédio terá Voz.


Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...