sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Uma rua

 

Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memória, a começar pelo traçado de paralelepípedo mais irregular e solto,  o inço grassava no entorno da calçada e quase não havia passantes, nem bola jogada, nem gritaria de criança, latido de cachorro, rotina de ambulantes. Nada, absolutamente nada havia ali que lembrasse o trajeto do qual eu havia, no passado, circulado tantas e tantas vezes em um esperançoso vai e volta.

Firmei o passo e o olhar procurando traços do que havia em mim sobre aquele caminho em particular e assim, comecei a pensar que a passagem deteriorada pode ser resultado destes últimos tempos em que andei solta por aí, perdida em pensamentos, olhando para todos os lados e para lado nenhum, divagando em conceitos, diminuindo certezas, duvidando aqui e ali de muito ou de nada. Irrelevância parecia estar palmilhando a estrada e o resultado da mente vagante determinou o motivo do trecho estagnado.

Pensei em voltar a fita da vida e restaurar o rumo antigo. Iniciei levantando os olhos frente ao mar, depois deixei que o vento me indicasse qual lado da rua escolher, na sequencia firmei minha alma no propósito de alcançar as  crenças antigas e tão caras para mim que, por qualquer motivo, se achavam cobertas por um véu. Segui firme no restauro da rua antiga arrancando com firmeza tudo o que atravancava a calçada, chamei os ambulantes, as crianças, cachorros e gatos que dali haviam partido e todos retomaram o espaço alegremente. A breve excursão para dentro de mim reativou um tempo bom daquela rua da minha vida.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A Veranista

O silêncio do longo inverno nos corredores do prédio ecoa em meus ouvidos como se fosse uma música recorrente e monocórdia que  simplifica o dia a dia, que ensurdece os tantos ventos airados que circulam intermitentes em uma conversalhada confusa onde seus atores se constituem em todos os elementos da natureza. É no corredor gelado que a voz do mar, das árvores, dos passarinhos e das flores se enredam numa linguagem própria.

Esse tempo, porém, sempre tem data certa para acabar, pelo menos no calendário, e assim que o sol vem de longe para nos abafar aqui em frente o corredor se toma de silêncio absoluto, parecendo se preparar para uma mudança radical no lufa-lufa inóspito do ano todo. Quieto, aguarda em profunda reverência a Veranista adentrar o espaço sorrindo, como de costume, bem perto da minha porta

Junto com o sol quente, o mar calmo, o vento escondido, as árvores com sombra e os passarinhos na grita geral se estabelece a expectativa de que as escadas terão maior realce, as vozes se agigantam em tom alegre, a vestimenta leve de verão inunda o espaço cogitando com entusiasmo que o tempo é de circular por entre todos, distribuindo sorrisos e abraçando a saudade do lugar.

A Veranista com o riso solto se apropria do espaço com circunstância e dele vai extraindo o que existe de melhor na temporada de Verão. A calma e a luz se instalam fazendo a vida ter mais sentido, mais movimento e jovialidade unindo em estrofes únicas o sentido de se avizinhar em um ambiente tão abençoado pela natureza.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Rodoviária

 

Meus passos me levaram a vaguear por aí sem destino e sem propósito, levada apenas pela curiosidade de mudar a paisagem deste dia em que me assalta uma diversidade de assuntos. Fui à rua em busca de resposta e tenho fé que o vento me empurre decididamente a um lugar que me inspire, que me forneça com delicadeza uma reflexão por detrás dos panos. 

O olhar anda opaco e vai salteando entre tudo que nas ruas se apresenta com mais colorido ou com cinzenta tristeza, e deste jeito, ao acaso, cheguei naquela Rodoviária estancando meu passo e alertando meus sentidos de maneira singular em um caleidoscópio de imagens misturadas e juntas ao mesmo tempo. 

Um lugar onde literalmente as vidas perambulam de um lado para outro carregando em sua alma um alivio e alvoroço por estar prestes a sair daquele lugar que o tenha atraído involuntariamente, se aproximando, talvez da hora de se escafeder dali se por ventura a viagem não lhe favoreceu. Semblante ansioso, com um leve sorriso no canto da boca e uma respiração aliviada, se constitui em uma boa soma de transeuntes pelo amplo estacionamento. 

Mais um lance atento na observação traz aos ouvidos uma algazarra estridente vinda de uma penca de rostos sorridentes e animados que dão a nítida impressão que a passos largos se aproxima uma aventura desejada e que agora está prestes a acontecer. O espírito se expande e aligeira a caminhada. 

Mas este lugar não vive somente de vai e vem frenético de pessoas correndo atrás de alguém, de um lugar, de alguma coisa ou de coisa nenhuma. Existem  encontros pontuais e diários de personagens que ali aportam para uma prosa, um trago, um café, um pão com manteiga. São os atores do circo da vida que já deixaram de correr sem rumo e que assentaram sua cobiça por qualquer motivo: por cansaço nas pernas, por falta de melhor assunto, pelo opacamento da vida em curso, pelo sentimento de pertencer. Um bar de rodoviária, um cigarro, uma cachaça, uma empada. Um encontro com a vida que passa.

domingo, 13 de agosto de 2023

Preciosidades

  

Dia enevoado, brisa sorrateira e silêncio obsequioso premia o amanhecer que, lento e preguiçoso, não sabe se fica atrás do mar mais um pouco ou se irrompe com bravura e cumpre com sua rotina neste dia sombrio. Meu olhar e minha respiração acompanha o tempo e sigo fuçando na quinquilharia circundante, não sei bem se para organizar tudo novamente ou se apenas procurar um norte, um ensejo, uma proposta, uma esperança de um pensamento vago. 

Na separação da traquitana dei de cara com fotos fluidas, de outro tempo. Em meio a modorra do dia saltou à minha frente aquela chave antiga que combinava tanto com o amanhecer sombrio quanto às minhas conjeturas e, ávida por assuntos memoráveis tratei de me dedicar ao objeto com fervor. 

Lembrei-me muito rapidamente do meu armário de criança a qual me foi dado o direito de ter nele uma gaveta chaveada o que considerei um privilégio inestimável e iniciei então a minha coleção sigilosa de assuntos diários de criança, temas estes que mereciam ser inatingíveis e secretos. 

A chave por si só denotava grande capricho e responsabilidade no manuseio me encantando pela confidencialidade que se interpunha entre nós. Com cuidado, passei a colecionar assuntos caros na meninice e assim fui empilhando pequenos bilhetes familiares, resquícios de um ensaio de prosa, página de caderno rasgada e solta,  um bloco pequeno em branco contendo entre suas páginas pétalas ressequidas, um pequeno diário chaveado, um toco de vela, uma travessa de cabelo, um laço de fita amarelado pelo tempo, um estojo com lápis, apontador e uma borracha, um feixe de lápis de cor, um porta joia com uma caneta tinteiro, uma caixa minúscula com meu primeiro dente de leite, uma mecha de cabelo encaracolado enlaçado com fita de cetim azul ,uma bola de gude, um dado. Assim, rapidamente, a gaveta ficou povoada com os meus assuntos de época. 

Esta lembrança me diz da importância de vez ou outra utilizar uma chave antiga porque elas sempre abrirão tesouros.

domingo, 11 de junho de 2023

Derrubada

Derrubei a história que estava contida há muito tempo dentro desta garrafa que levei até a beira mar porque, ao contrário do que eu havia imaginado, ela parecia ter se dado por vencida, e, fracassada em sua mensagem arrombou a rolha que lhe estancava o conteúdo precioso de outrora e se espalhou desordenada pelas areias úmidas da beira do mar desejando que as ondas viessem ao seu encalço e tragasse para a sua profundeza letra por letra, ponto por ponto. 

Havia ainda a questão do sentido intrínseco da história abatida que surpreendentemente insistiu em manter-se por ali, negando-se a desaparecer como se não houvesse existido, afinal, não é eliminando letras, verbos, consoantes, preposições, ponto e vírgula que se apaga um significado que já criou asas e trilhou seu caminho enquanto mensagem, já atravessou mentes heroicas, covardes, ignorantes e inteligentes, já se expôs ao ridículo e ao sucesso, já se recolheu e já tornou a se manifestar. 

O impasse estava criado quando a maresia correu em auxílio da história que teimava em não se evaporar criando uma bruma tênue e acolhedora e deste modo singular o teor se aninhou. 

Resolvi aceitar o desafio de rever em que período aquela mensagem havia se esvaído de si mesma, em que momento aconteceu a retranca do pensamento, em que ponto a história perdeu seu rumo chegando ao extremo de desejar se esvanecer nas areias da praia, mas, quase que imediatamente percebi que a conjunção de esforço no alinhavo do palavrório não se apaga assim facilmente porque o pensamento expresso possui vida própria atravessando com pertinácia a gangorra da vida com grande probabilidade de ser tão ou mais atual do que o próprio tempo.

domingo, 28 de maio de 2023

Nudez

A verdejante natureza se traveste de nova coloração, talvez cansada da antecessora tonalidade alegórica, maciça e invasiva desde que o dia amanhece até os últimos raios do Rei Sol imperante e, quem sabe, revoltada com a aridez da terra resolveu descansar de tudo e vestir um entretom, sugerindo que os ventos serão gelados por um bom tempo e assim sua sensibilidade fica protegida através de uma nuança mais uniforme, estável e natural. A gradação sépia toma conta da paisagem na preamar, nos jardins e nas praças. 

Tempo pós-colorido pede maior estabilidade da terra em sua roupagem trazendo alívio que vem, inicialmente, da mudança na cor das ondas do mar engraçadamente concordante com a transformação, não resistindo à simplicidade dos argumentos da natureza que deseja descansar, desfolhando-se de sua espalhafatosa vestimenta que sombreia a estação mais quente do ano. 

E assim o galharedo de árvores e arbustos se reveste do seguro e sério tonalizante, deixando que suas folhas percam momentaneamente a vida para forrar as trilhas com a palheta de cores do outono e este modo ingressa nos lares e no espirito do conforto e simplicidade. 

A balada sofisticada do clima adentra o interior dos ambientes e revoluciona o dia a dia que, animado, se prepara para dias de mais quietude, de acalmação das ideias, quem sabe até não ter ideia nenhuma, esvaziando-se para que outro matiz tenha oportunidade de pintar o pensamento e pousar com suavidade na alma descolorida. 

Forma-se assim a estabilidade do vazio e do silêncio que se acerca do aconchego de uma poltrona, uma manta quentinha, um café fumegante e novas letras a serem inseridas no dia a dia de um período em que a natureza fica nua.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Clube Riograndense / Montenegro / Sem memória, sem história

Deparei-me com um impasse nesta manhã, quando o sol nem havia dado as caras e eu ainda não tinha me localizado no mundo e, como muitas vezes acontece, pensei em acompanhar meu espírito com uma curiosidade infantil para verificar aonde ele me levaria a navegar, se pelo passado caudaloso em histórias ou se ateria ao momento presente entremeado de sonhos e expectativas, algumas reais outras sem proposito. 

No filme que se apresentou a mim, colorido e em câmera lenta escolhi o episódio que acompanhou meus passos da adolescência à menina-moça: o Clube Riograndense de Montenegro, um edifício com uma feição dos anos 1800, com o propósito de ser um Clube Social, onde as famílias e seus descendentes usufruíam de um espaço onde acontecia a celebração de eventos como Aniversários, Casamentos, Baile de Debutante, Baile da Primavera, Kerbs e Reunião Dançante nas tardes de domingo.  Memoráveis lembranças. 

Veio até mim a arquitetura antiga e sóbria do edifício, sua fachada austera e bem acabada que recebia em dias de baile as moçoilas vestidas no rigor da festa e com o coração aos pulos verificavam se seu par de dança já se encontrava a postos no grande Salão. Como era de costume nos idos de 1960, as meninas ficavam apenas na espreita de que seu par as levasse para dançar. Os rapazes imberbes, envergando terno e gravata se reunia como se adultos fossem perto do bar e, às vezes, restavam ali por uma noitada inteira. 

Fui surpreendida por uma emoção indescritível ao enveredar por tais reminiscências sentindo o aroma que o Clube exalava de si no momento em que se adentrava sua porta enorme em estilo arquitetônico com corrimões sinuosos, escadarias sólidas, mesas e cadeiras bem talhadas, sofás e poltronas de couro, fechaduras de cobre, vitrais decorados, lustres e lamparinas no melhor estilo da época. 

Este era o retrato do centro social de Montenegro de 1960 onde todos se encontravam com pompa e circunstância como ocorria naquele tempo antigo e inesquecível onde todos se conheciam, compartilhavam dos protocolos da sociedade que comemorava Eventos festivos importantes. 

De repente, minha visão do passado escapuliu da minha mente e, como em um soco no ventre percebi que a alma deste prédio havia desaparecido. Sem memória, sem história.

sábado, 8 de abril de 2023

Vida roubada

 

Ela veio nas ventas de Sagitário que diz a lenda dos astros nasceu liberta como passarinho do mato, coração como ave gigante que anda por todos os céus planando aqui e ali, porém seguindo o curso dos ventos sem muito olhar para trás muito menos para os lados, indo em frente amenizando todos os desafios que possa encontrar. 

Mesmo ainda menina sentiu a flecha do centauro esburacando seu coração e desde aquele dia nunca mais se desprendeu do feitiço animal que tomou conta de sua vida, inebriando as condições de afeto praticamente sem possibilidade de arrancar a condição sentimental que havia se instalado de maneira definitiva quase como uma patada de cavalo que nunca cicatriza. 

Foi desta maneira bem lúdica que o tempo foi passando e moldando em um feitio único uma vida qualquer, uma existência comum, um andarilho de Deus seguindo seu caminho com fé que as escolhas são definitivas e que assim acomodada à vida vai tendo seu curso, às vezes com mais pressa, às vezes com mais vagar, mas para o centauro ilustrado o potreiro com cancela lacrada a sete chaves dá uma sensação de segurança e de para sempre, mesmo que mais adiante aconteça o contrário. 

O dia nem tinha amanhecido a pleno quando a porteira que enquadrava a vida já passada em anos escancarou-se deixando como ferida aberta todos os propósitos alinhavados, esfarelando a perspectiva de enquadramento único em uma combinação, desamarrando com facilidade os nós preciosamente colecionados durante tantos anos. Restou ali, no chão batido de um coração partido o centauro com patas, ventas e flechas inerte.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Paixão de Cristo

 

O dia amanheceu orvalhado da noite escura, sem estrelas e com uma calmaria anunciando que o dia de celebração da Paixão de Cristo estava acompanhado do pensamento cristão que neste dia manteria suas falas em silencio, a musica profana baixaria o tom se unindo ao sossego respeitoso instalado como prece ao sofrimento e sacrifício de Jesus Cristo pela humanidade. 

A estrada percorrida estava eivada de pedregulhos, raízes, galhos secos assim como o tempo era soberano em açoitar Cristo em sua caminhada, porém, em nenhum momento deixou de seguir em frente em seu propósito de fazer o bem, perdoar as ofensas e salvar a humanidade que se perdeu por entre vários caminhos. 

Em sua peregrinação arrebanhou uma multidão que acompanhava o Mestre com devoção e ouvia seus ensinamentos reconhecendo todos os milagres que dia a dia iam acontecendo frente á população que vivia sem esperança. Cristo trouxe o brilho da Fé a todos que o seguiram e ouviram suas palavras como sendo o Filho de Deus. 

O clima se curva ao simbolismo deste dia em que Jesus Cristo chega ao final do caminho pontilhado de traição, duramente percorrido e agora jaz pregado na cruz, com a carne dilacerada banhada em sangue deixando entrever seu olhar de ternura infinita por todos os seres humanos o qual deu sua vida prometendo voltar. 

E então, no terceiro dia após sua morte, vestido com brancas vestes e com todas as suas feridas cicatrizadas, ele rasga a atmosfera e sobe para se sentar a direita de Deus Pai. Aleluia.

domingo, 2 de abril de 2023

As marcas da secura

Ansiosa, fico perambulando pela casa de porta em porta, de janela em janela, inspirando os ares quentes para ver se consigo sentir que a mudança obrigatória do clima já esteja com a mala afivelada aguardando a chegada do Trem do Litoral o qual deverá embarcar sem demora e sem mais delongas uma vez que todos os narizes praieiros aguardam por ventos mais frios. 

As marcas da secura estão com suas cicatrizes à mostra sangrando poeira e pedregulho, travando córregos, aborrecendo sementes e murchando as flores das mais resistentes levando a natureza a se manifestar com estardalhaço para que os ventos e as águas mais frias aconteçam com presteza por estes lados. 

É tempo de fechar o guarda sol, guardar com erva-cheirosa cangas e biquínis, retirar da vista o chinelo de dedo, abandonar bronzeadores, secar ao sol ainda quente a bolsa térmica de praia repudiando, por ora, o tempo etílico e sumir com as cadeiras que já denunciam ferrugem do período. Enfim, esperar o desejado tempo fresco que se avizinha com a pompa e circunstância que merece. 

O espírito se prepara para ouvir o silêncio que se instala nas asas do vento da deliciosa mudança que se aproxima, torcendo para que a balburdia seja deixada para trás, como um traste mal visto, uma ocasião fora da curva que traz o desequilíbrio da proposta da estação de descanso neste pedaço de chão abençoado que usufrui da passagem marcada das Estações do Ano. 

Ele chegará em breve, diz o meu Barômetro. Como lhe é peculiar, virá calmamente, primeiro iluminando com luz muito clara o dia, arrefecendo as ondas do mar, molhando bem devagar o chão batido do verão passado, dando sustos mais frios alternando a brincadeira com o sol abrasador que não perde a mania de ser o Rei. Todos a postos. Ele virá.

sexta-feira, 17 de março de 2023

As Praieiras

 


O cenário se prepara para elas e deste modo bem lúdico a natureza finaliza o ambiente cenográfico ajeitando as luzes do céu em tons mais brandos combinando com o sol que se descortina como sempre rutilante porém, amenizado pelo entorno verde e litorâneo, com suas areias já acomodadas e as franjas do mar mais tímidas em seu vai e vem. Tudo pronto. 

Em um primeiro vislumbre se repara no alinhamento do olhar que unido vai permitindo que os atores da rua se desnudem frente a elas e então se inicia o “trottoir” diário dos personagens que quase em câmera lenta vão se alternando em frente ao preguiçoso olhar coletivo instalado já no raiar do dia. 

O falatório maroto parte em missão unindo a fala que se apresenta -  supostamente verdadeira - atingindo aqui e ali as entrelinhas com sagaz observação de deboche, atrevimento e volúpia sempre inteligentemente finalizado com uma risada escancarada como que zombando de si mesmo nesta trincheira da vida. 

Seus corpos lado a lado acomodados evidenciam com singeleza sua consistência adquirida através dos anos com a sobriedade que lhe foi permitida redesenhar suas marcas com perfeição calculada porque afinal, a caminhada se deu através de tempestade e calmaria se alternando no açoite do tempo permitindo que agora surja a escultura perfeita do corpo. Este cenário simples vem suntuosamente embalado pelo dom que a natureza humana possui de impregnar a uma cronologia implacável um espírito divino.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Chuva em transe

 

Eu tenho certeza que ela está por aqui em algum lugar sabido, mas ignorado, quem sabe à espreita atrás daquele poste, ou, se virar a esquina ela será descoberta, quem sabe ainda atrás de alguma nuvem se disfarçando no ir e vir do vento aguardando a chegada do melhor momento para se derramar sem dó nem piedade por sobre esta terra ressequida e ávida do seu complemento essencial para vida. 

Empedernida e voluntariosa, fica espiando o vai e vem do clima que cheio de humores ora emburra e empaca no grau máximo solar ou resolve cair em queda livre deixando seres vivos e outros nem tanto, perdidos, olhando para cima a espera de um desenlace, afinal o olho do furacão está sempre na berlinda. 

De certo modo o preparo é intenso uma vez que se ausentou por um período voluntariamente e agora deseja retornar ao ponto correto de sua glória corrigindo o clima encardido e ressequido. Deverá surgir em parceria com o céu que a auxiliará na performance do derrame, junto aos sons estrondosos das nuvens no bailado da tempestade. Fico olhando para todos os lados, aponto o nariz para cima e para abaixo e busco os sinais característicos da tempestade sem encontra-los. 

Mesmo que ela não ressurja nestes dias com a força desejada gosto de imaginar a apoteose de sua entrada nesta estação seca e posso sentir em minhas narinas o vento gelado que a envolve em seus braços como se fosse um choro repentino se derramando por sobre a natureza que, emocionada, responde com verdejante entusiasmo. A saudade de se derramar regularmente cessará assim que a garoa se fizer presente como se fosse um choro convulsivo.

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...